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Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia foi o enredo criado por Joãosinho Trinta e apresentado pela Beija-Flor no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro em 7 de fevereiro de 1989. A escola ficou em segundo lugar na apuração, perdendo para a Imperatriz Leopoldinense (que desfilou com Liberdade, Liberdade), porém marcou a Passarela do Samba com um dos desfiles mais impactantes da história do carnaval carioca[1].
Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia | |
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Beija-Flor 1989 | |
O "Cristo mendigo" da Beija-Flor em 1989. | |
Ficha técnica | |
Componentes | 4 mil |
Presidente | Anísio Abraão David |
Carnavalesco e Autor do enredo |
Joãosinho Trinta |
Figurinista | Viriato Ferreira |
Direção de carnaval e harmonia | Laíla |
Mestre-sala e porta-bandeira | Marco Aurélio e Rosária |
Comissão de Frente | Amir Haddad |
Compositores do samba-enredo | Betinho, Glyvaldo, Zé Maria e Osmar |
Intérprete | Neguinho da Beija-Flor |
Diretor de bateria | Milton Rodrigues (Pelé) |
Rainha de bateria | Soninha Capeta |
Há três versões para a concepção do desfile. Numa delas, Joãosinho Trinta teria se inspirado numa mendiga que viu em Londres, em 1988, e que o impressionou pela sua elegância[2]. Outra influência pode ter sido o musical da Broadway Les Misérables, que o carnavalesco assistiu. No entanto, uma das versões mais aceitas entre os sambista está no fato de que Joãozinho Trinta não teria gostado do excesso de elogios por parte de crítica à estética rústica apresentada pela Unidos de Vila Isabel no ano anterior (o que rendeu aclamação a escola do bairro de Noel; sucesso da crítica e do público). Na avenida, a Beija-Flor mostrou o contraste entre o luxo das elites e a pobreza dos mendigos que vivem no meio do lixo[3].
A história da Beija-Flor pode ser dividida entre antes e depois de Joãosinho Trinta. Com a chegada do carnavalesco em 1975 e o apoio do banqueiro do jogo do bicho Anísio Abraão David, a escola foi tricampeã consecutiva, conquistando os títulos dos carnavais de 1976, 1977 e 1978. Os desfiles assinados por Joãosinho mudaram a estética do carnaval, com alegorias grandes e muito luxo. A agremiação ainda foi campeã em 1980 (empatada com Imperatriz e Portela) e em 1983, conquistando cinco títulos em oito anos. A Beija-Flor chegou ao carnaval de 1989 enfrentando um jejum de cinco anos sem vitórias. O último título conquistado pela escola foi no carnaval de 1983, com o enredo "A Grande Constelação das Estrelas Negras". A escola ainda foi vice-campeã nos carnavais de 1985 e 1986.[4] Ao mesmo tempo que Joãosinho Trinta colecionava títulos e admiradores, também recebia críticas de sambistas mais conservadores, que criticavam o excesso de luxo em seus carnavais, colocando em segundo plano o ritmo, o canto e a dança, elementos tradicionais do samba. Foi respondendo a uma dessas críticas que o carnavalesco disse a famosa frase: "O povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual".[5] Acentuando as críticas, o carnaval de 1988 foi vencido pela Unidos de Vila Isabel com o histórico "Kizomba, Festa da Raça", um desfile considerado "barato", realizado com materiais simples. A vice-campeã foi a Mangueira, também com um desfile "singelo". A Beija-Flor de Joãosinho foi a terceira colocada com um dos desfiles mais luxuosos da época. Num rompante de emoção, Joãosinho declarou que o júri gostava de premiar as escolas "menos luxuosas" e afirmou que, após a vitória de "Kizomba", faria um desfile de mendigos.[6]
O enredo "Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia" é uma crítica social que utiliza os conceitos de lixo e de luxo como metáforas para questionar temas como política, sexo e religião. Segundo a sinopse do enredo, escrita por Joãosinho Trinta, ele "foi provocado pela percepção da enorme quantidade de sujeira, de lixo que nos cerca e nos está sufocando. É o lixo físico, mental e espiritual deste país. É o lixo da falta de amor, da honestidade e do respeito à vida. Tremendas falhas que vem provocando o aumento do grande povo de rua abandonado, escorraçado e esquecido. Quantidade enorme de mendigos, famintos, desocupados, loucos, pivetes, meretrizes, travestis povoam os espaços do Brasil. É a falta de empregos, de orientação e tantas outras carências. Por outro lado existe um luxo causador de tantas calamidades. É o luxo de gastarem milhões de dólares com armamentos, politicagem, igrejas, negociatas e tantas outras falcatruas".[7] A ideia do enredo surgiu em 1988, durante uma turnê da Beija-Flor em Londres. Durante um passeio a noite, com sua assistente, Marly Alvarenga, João avistou uma mendiga com a roupa picotada em tiras, o que, em sua visão, lhe conferia certa elegância.[8] Segundo Joãosinho, ele também foi impactado pelo decreto de falência da cidade do Rio de Janeiro em 1988.[9] Após a escolha do enredo, o carnavalesco teve dificuldade para convencer a comunidade da Beija-Flor a aceitar o tema.[6]
"Os primeiros a aceitar a ideia foram os jovens, que não têm dinheiro para fantasias caras. Precisei dar muitas explicações a presidentes de alas e só 'dobrei' certos integrantes da escola graças à diretoria, que sempre me deu liberdade de trabalho."
- — Joãosinho Trinta, sobre o processo de convencimento da comunidade sobre o enredo.[6]
O samba-enredo do desfile foi composto por Betinho, Glyvaldo, Zé Maria e Osmar. De letra curta e melodia alegre, a obra brinca com a dualidade entre o lixo e o luxo ("Reluziu... é ouro ou lata? / Formou a grande confusão / Qual areia na farofa / É o luxo e a pobreza / No meu mundo de ilusão"). O primeiro refrão tem os versos "Xepa de lá pra cá xepei / Sou na vida um mendigo / Da folia eu sou rei". O refrão principal ("Leba larô, ôôôô / Ebó lebará, laiá, laiá ô") é um cântico em saudação às "entidades de rua" (Exus e Pombajiras), contempladas em parte do enredo. "Leba" e "lebará" (Ẹlẹ́gbára) são qualidades de Exú. "Ebó" é uma oferenda aos orixás; enquanto "larô" é uma abreviação de "laroyê", uma saudação a Exú.[7][5] O samba foi oficialmente lançado no álbum Sambas de Enredo das Escolas de Samba do Grupo 1A - Carnaval 89, com interpretação de Neguinho da Beija-Flor.[10]
Originalmente, o carro abre-alas do desfile, criado por Joãosinho Trinta, seria uma reprodução dos Arcos da Lapa cercados por uma favela. Diretor de carnaval e de harmonia da escola, Laíla sugeriu ao carnavalesco criar um "Cristo mendigo" saindo da favela. Joãosinho acatou a ideia e assim surgiu a icônica alegoria. Uma reprodução da estátua do Cristo Redentor, vestindo trapos, emergindo de uma favela, cercada por mendigos. Uma semana antes do desfile, houve um incêndio no barracão da Beija-Flor com o fogo atingindo o carro abre-alas. No dia seguinte, quando os funcionários da escola iam começar a reconstrução, o carnavalesco os impediu, avisando que a alegoria queimada tinha ficado exatamente como ele queria e ninguém deveria mexer. No sábado de antevéspera do desfile, o juiz Carlos Davidson de Meneses Ferrari, da 15.ª Vara Cível do Rio, assinou uma liminar proibindo a exibição do "Cristo mendigo", e de duas alegorias da escola de samba Tradição, com reproduções do Cristo Redentor e de São Sebastião. O juiz acatou um pedido da Arquidiocese do Rio de Janeiro, circunscrição eclesiástica da Igreja Católica responsável pela manutenção do Cristo Redentor. O assessor de imprensa da Arquidiocese, Adionel Cunha, declarou que o Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio Sales, "não é contra as escolas de samba ou o carnaval, mas contra os excessos", lembrando que Dom Eugênio só autorizou o advogado da Arquidiocese a entrar com a ação na Justiça depois que o Bispo auxiliar, Dom Romeu Brigenti, escreveu uma carta aos presidentes da Beija-Flor e da Tradição "ponderando ser inaceitável o uso de símbolos religiosos em festas profanas". Como não obteve resposta das escolas, a ação foi impetrada na Justiça. Em entrevista para a Folha de S.Paulo, no domingo de carnaval, Anísio Abraão declarou "a imagem (do Cristo Redentor) é usada pelo BANERJ, supermercados, nas tabelas dos táxis e até em campanhas políticas e nunca ninguém proibiu". Também disse que o Cristo iria para a avenida, mas que o carnavalesco faria algumas modificações na alegoria.[6] Laíla reivindica para si a ideia de cobrir a estátua do Cristo com plástico preto e pendurar um faixa com a inscrição "Mesmo proibido, olhai por nós!". Joãosinho Trinta nunca negou a versão contada por Laíla. Confrontado, preferia celebrar o desfile como uma obra coletiva da Beija-Flor.[8] Antes do desfile, uma nova decisão judicial liberou a escola para apresentar o "Cristo mendigo", mas Joãosinho decidiu manter a escultura coberta, alegando que "tiraram a proibição do papel, mas não do pensamento".[11]
"É a primeira censura das autoridades a uma alegoria de escola de samba e para nós foi chocante, pois quisemos homenagear o Cristo como símbolo da cidade do Rio de Janeiro, num pedestal, em que os pobres e os mendigos estão ali representados alegoricamente. Quisemos reverenciar o Cristo não apenas como redentor, mas como símbolo da tolerância e da fraternidade com os mais carentes, o que reflete uma realidade do nosso país, em que o luxo convive com o lixo alegoricamente, mas, lamentavelmente, não fomos compreendidos."
- — Joãosinho Trinta, sobre a censura ao "Cristo mendigo".[11]
A Beija-Flor foi a penúltima das nove escolas que se apresentaram na segunda noite do Grupo 1 de 1989, iniciando seu desfile com o dia clareando, no início da manhã da terça-feira, dia 7 de fevereiro de 1989.
O convite
O primeiro setor do desfile foi formado por diversos componentes interpretando mendigos. Segundo o roteiro da apresentação, esse início de desfile expõe "a falta de empregos, de orientação e tantas outras carências" que gerou uma "quantidade enorme de mendigos, famintos, desocupados, loucos, pivetes, meretrizes, travestis que povoam os espaços do Brasil".[7] O desfile foi aberto pela Comissão de Frente, coreografada pelo teatrólogo Amir Haddad, com quatorze integrantes do seu grupo teatral, o Tá na Rua. Os componentes da Comissão interpretavam mendigos com roupas confeccionadas com retalhos de tecido branco, chapéu e calçado. Segundo o roteiro do desfile, "mendigos de gala". Após a Comissão, desfilou o icônico carro abre-alas com o "Cristo mendigo" coberto com um plástico preto com uma faixa branca com a inscrição "Mesmo proibido, olhai por nós!". Na base do carro, diversos componentes interpretando mendigos. O carro abre-alas foi seguido por uma ala de componentes interpretando mendigos. Fechou o primeiro setor a segunda alegoria, que simbolizou um lixão com vários mendigos e um grande cartaz, como se fosse um muro pichado, com a inscrição: "Atenção: Mendigos, desocupados, pivetes, meretrizes, loucos, profetas, esfomeados e povo de rua: Tirem dos lixos deste imenso país, restos de luxos... Façam suas fantasias e venham participar deste grandioso Bal Masqué (Baile de máscaras)". Na parte de trás do cartaz constava a inscrição: "Mendigos, a Sapucaí é vossa!". Os mendigos do primeiro setor foram interpretados por atores de diversos grupos teatrais, como o Tá na Rua, de Amir Haddad; o grupo Star, de Anderson Müller (filho do presidente da Beija-Flor, Anísio Abraão David); o grupo Quizomba; além de alunos das escolas de teatro da UNIRIO, da CAL e do Tablado. Entre os atores famosos que desfilaram como mendigos estavam Deborah Evelyn, Guilherme Fontes, Isabela Garcia e Marcos Breda; além dos carnavalescos Paulo Barros e Viriato Ferreira.[12] As fantasias de mendigo foram confeccionada pelos próprios atores, com roupas e acessórios usuais do cotidiano, que foram sujos e rasgados. As fantasias das demais alas foram desenhadas pelo carnavalesco Viriato Ferreira.[9]
O lixo do luxo
No segundo setor do desfile, o povo das ruas atende ao "convite" para que fizessem do lixo suas fantasias. Com alegorias e fantasias em tons predominantemente azul e dourado, o setor simboliza um delírio dos mendigos que, fantasiados, se transformam em reis e rainhas. Segundo o enredo, "restos de carnavais, de brilhos, cores e formas começam a ser procurados nas lixeiras. Todos querem se aprontar para a festa. Na procura desses materiais eles gritam: ratos e urubus, larguem minha fantasia!". O setor é aberto pela tradicional Comissão de Frente da Beija-Flor, formada por homens negros, representando os "Guardiões do Rei e da Rainha dos Mendigos". Logo após a Comissão, uma alegoria reproduz um palácio medieval, tendo como destaques de luxo Isabela Dantas e Isidoro como "Rainha e Rei dos Mendigos" e, acima deles, Jésus Henrique com uma luxuosa fantasia preta de "Urubu Real". A alegoria tem ainda estandartes com as inscrições "Sou na vida um mendigo" / "Na folia eu sou rei", trecho do samba-enredo do desfile. A quarta alegoria, também com contornos medievais, teve como destaques Beth Antunes e o ator Jorge Lafond. O desfile da "corte imaginária" terminou com a quinta alegoria, batizada de "Lixo do Luxo", que teve Linda Conde como destaque. O carro foi decorado com fantasias usadas por Linda em carnavais anteriores.
O lixo das igrejas
No terceiro setor, o desfile abordou a exploração espiritual, a riqueza adquirida com a fé alheia e a promessa de salvação das almas. A sinopse do enredo cita igrejas Católicas, Protestantes, Umbandistas e Eletrônicas (conceito destinado a programas religiosos em rádio e televisão). No delírio proposto pelo enredo, componentes do setor encarnam mendigos que pedem esmolas na porta de templos e igrejas, e que aceitam o convite para o "baile de máscaras", fazendo do lixo suas fantasias. Neste setor desfilou o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira da Beija-Flor, Marco Aurélio e Rosária, com fantasias em tons de azul claro e dourado, com plumas no tom azul escuro. Marco Aurélio e Rosária estrearam no carnaval, após vencerem um concurso pra substituir Élcio PV e Dóris, casal anterior da Beija-Flor. Atrás de Marco e Rosária desfilaram outros sete casais de mestre-sala e porta-bandeira, com fantasias coloridas. Em determinado momento, os casais davam as mãos e formavam um círculo. Após os casais, desfilou a bateria da escola, comandada por Mestre Pelé (Milton Rodrigues), auxiliado por Bitinho e Jaiminho. Ritmistas usavam roupas em tons de azul claro, branco e preto. À frente da bateria, desfilou um grupo de passistas mulheres e pandeiristas homens liderados pela madrinha da bateria, Neide Tamborim.
Encerrando o setor, desfilou a sexta alegoria, representando uma igreja com reproduções de vitrais, candelabros, esculturas de anjos, e detalhes em vermelho e dourado, inspirados na estética católica. Componentes desfilaram com fantasias que lembram as vestes de padres, cardeais e santos católicos.
O lixo da guerra
O quarto setor fez referência aos profetas de rua e aos loucos que "produzem os morticínios, as guerras. Os que ganham dinheiro com o sangue humano derramado. Fabricantes e mantenedores de situações obscuras na terra, no mar, e no ar". O setor foi aberto pela ala da damas da Beija-Flor, que desfilou carregando sombrinhas e com fantasias em tons de rosa, roxo e branco. As alas seguinte fizeram referências ao Profeta Gentileza, ao imperador romano Nero e ao imperador francês Napoleão Bonaparte. Encerrando o setor, desfilou a sétima alegoria, que tinha a reprodução de quatro cavalos coloridos, representando os quatro cavaleiros do apocalipse, personagens descritos na terceira visão profética do Apóstolo João no livro bíblico de Apocalipse. Segundo o roteiro do desfile, o cavalo branco simbolizou a carestia; o vermelho é a guerra; o amarelo é a peste; e o preto é o justiçamento. A base do carro tinha a reprodução de tanques de guerra.
O lixo do sexo
O quinto setor foi aberto pela Velha Guarda da Beija-Flor com figurinos tradicionais (terno e leque para as mulheres; fraque e cartola para os homens) nas cores da escola, azul e branco. O setor abordou "o lixo do sexo". Segundo o roteiro do desfile, "as meretrizes, embevecidas, nem acreditaram quando souberam do convite. Saíram da Lapa e correram para a Rua Alice. Foram procurar velhos "pegnoirs" coloridos, perucas, espartilhos e calcinhas pretas bordadas. Estão sempre acompanhadas dos Zés Pilintras que cercam seus passos. Como libélulas voaram para além do tempo. Chegaram ao Império das Cortesãs, das Bacantes, das prostituições, dos sadismos, das inversões e perversões sexuais". No delírio proposto pelo enredo, as prostituas que ganham a vida nas ruas do país se juntam aos mendigos, profetas e loucos para o "grande baile" na Sapucaí. Nas alas do setor, mulheres desfilaram de espartilhos e perucas coloridas, acompanhadas de homens vestidos de terno e cartola, representando gigolôs. Encerrando o setor, desfilou a oitava alegoria, que representou um "sauna romana" com casais de homens e mulheres, com pouca roupa, desempenhando uma coreografia sensual. Algumas mulheres desfilaram com os seios nus, enquanto alguns homens desfilaram de tanga fio-dental de couro. Entre os destaques da alegoria estavam os atores Sônia Lima e Alexandre Frota.
A imprensa aclamou o desfile com adjetivos como "antológico", "apoteótico", "chocante", "incrível", "inovador" e "revolucionário", listando a Beija-Flor entre as favoritas ao título de campeã com vantagem sobre outras escolas como Imperatriz, Salgueiro, Vila Isabel e União da Ilha.[13][14][15] Milton Abirached, do jornal O Globo, escreveu que a "Beija-Flor causou comoção na Sapucaí com nova revolução [..] O que aconteceu na Marquês de Sapucaí, em termos de movimentos artísticos, é algo que demora décadas, gerações para vir ao mundo [...] Joãosinho Trinta devastara o mundo, e sua crítica demolidora não perdoou ninguém. Nunca o esgoto foi tão bonito, contagiante, e defendido de forma tão coesa e empolgada".[16] Marcos Faerman, do Jornal da Tarde, qualificou o desfile como "um evento escandaloso, criativo, profundo" e "glauber-rochiano" em comparação com a obra do cineasta brasileiro Glauber Rocha. Em sua crítica, a revista Veja escreveu que "Joãosinho Trinta roubou o carnaval; entrou na avenida com seu 1,55m de altura e saiu com a estatura de um gigante popular". O Jornal do Brasil classificou o desfile como "imprevisível e desconcertante", apontando que "eram duas escolas de samba numa só: uma, do luxo paramentado com lixo; outra, do lixo ornamentado com luxo".[17] Na transmissão do desfile pela TV Globo, Paulinho da Viola declarou que estava vendo "algo criativo, surpreendente e novo" e que "só Joãosinho Trinta e a Beija-Flor poderiam fazer um enredo como esse. Uma crítica feroz, ao mesmo tempo uma autocrítica, um delírio onde a razão está presente", concluindo que o desfile "é um marco na história do carnaval e das escolas de samba".[8]
Os jurados do prêmio Estandarte de Ouro também aclamaram Joãosinho Trinta e o desfile. Bernardo Goldwasser classificou o trabalho do carnavalesco como "do mais alto nível plástico", destacando que "esse trabalho todo só foi possível porque a comunidade foi cúmplice e também ajudou a interpretar e criar. Nenhum figurinista sozinho, poderia desenhar os figurinos daquele primeiro grupamento de mendigos, um bloco de sujos com centenas de pessoas. Cada um se vestiu como idealizou e o resultado final foi belíssimo". Para Helena Theodoro, o desfile "além de comprovar a genialidade de Joãosinho Trinta, abriu um caminho para realização de algo novo, marcadamente brasileiro". Segundo Lygia Santos o desfile conseguiu fazer "uma reflexão muito séria, mas também muito solta deste Rio de Janeiro e do Brasil em que vivemos". Roberto Moura apontou que a "transfiguração que Joãosinho realizou derruba o mito de que ele só sabe trabalhar com luxo". Para Ricardo Moraes, o desfile foi um "choque": "Percebi que o público levou um tempo para pensar e perceber o que acontecia. Foi um espanto, um rompimento com o que estava estabelecido na cabeça de todos com relação a desfile de escola de samba [...] "No Brasil de hoje tem havido algumas rupturas, algumas transgressões e a Beija-Flor deste ano fez isso no que tange ao carnaval". Segundo José Carlos Rego, "estava tudo fluindo direitinho na avenida, com as preferências divididas entre Salgueiro, Vila e Imperatriz, quando a Beija-Flor chegou e tomou conta do espaço, violentando a Passarela. A fórmula usada por Joãosinho Trinta não chega a surpreender, pois ele já tinha feito trabalhos maravilhosos, como um perfeito dominador da técnica cênica. Por trás disso havia um belíssimo samba, a colaboração preciosa de Viriato Ferreira, um contingente espetacular, cuja força o Joãosinho soube galvanizar, começando por atrair as crianças. Não havia um só carro em que a garotada negra da baixada, com seu entusiasmo e dedicação, não estivesse presente para passar aquela energia capaz de transformar uma ideia em emoção. Foi o gênio do Joãosinho, é certo, mas foi, além disso, uma obra da coletividade, preparada e consciente de que iria arrebatar a avenida [...] Ter esse contingente capaz de concretizar a ideia é que foi a vantagem inicial da Beija-Flor, daí meus parabéns à escola como um todo. Sobretudo à bateria, que sustentou o mesmo andamento da concentração até o final. Mestre Pelé, Bitinho e Jaiminho estiveram perfeitos no comando, inclusive promovendo aquelas eficientes e arriscadas conversões de tamborim". Para Adelzon Alves, Joãosinho deveria reconhecer que andou errando em suas críticas e que as observações feitas sobre seus trabalhos anteriores é que lhe deram oportunidade de puxar pela inventiva e mostrar sua capacidade de recriar".[18]
A Beija-Flor foi a vice-campeã do carnaval de 1989 no critério de desempate após somar a mesma pontuação que a Imperatriz Leopoldinense. Dos trinta julgadores, apenas três não deram nota máxima à Beija-Flor. Seguindo o regulamento do concurso, as três notas foram descartadas, mas reutilizadas para efeito de desempate. A escola de Nilópolis obteve três notas abaixo da máxima, enquanto a Imperatriz recebeu nota máxima de todos os jurados, conquistando o título de campeã. Luizinho Drummond, presidente da Imperatriz, e Anísio, da Beija-Flor, chegaram a se abraçar e comemorar o empate. Festejado, Anísio foi carregado por componentes da Beija-Flor até seu carro e saiu do Maracanãzinho certo da vitória. Ele só foi informado do desempate quando estava a caminho de Nilópolis.[19][20] Mesmo com a derrota, a quadra da Beija-Flor recebeu milhares de pessoas, que festejaram durante toda a madrugada.[21][22]
A apuração do resultado foi realizada na quarta-feira de cinzas, dia 8 de fevereiro de 1989, no Maracanãzinho. As escolas foram avaliadas por trinta jurados em dez quesitos, sendo três para cada quesito. A menor nota de cada escola, em cada quesito é descartada, sendo utilizada apenas para efeito de desempate. Todas as agremiações receberam cinco pontos referentes à Cronometragem e mais cinco pontos referentes à Dispersão.[23] Abaixo, as notas recebidas pelo desfile da Beija-Flor:
Legenda: |
Cron. | Disp. | Total | ||||||||||||||||||||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Bateria | Samba-Enredo | Harmonia | Evolução | Conjunto | Enredo | Fantasias | Comissão de Frente | Mestre-Sala e Porta-Bandeira | Alegorias e Adereços | |||||||||||||||||||||||
J1 | J2 | J3 | J1 | J2 | J3 | J1 | J2 | J3 | J1 | J2 | J3 | J1 | J2 | J3 | J1 | J2 | J3 | J1 | J2 | J3 | J1 | J2 | J3 | J1 | J2 | J3 | J1 | J2 | J3 | |||
10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 10 | 5 | 5 | 210 |
A Beija-Flor foi a agremiação mais premiada do Estandarte de Ouro de 1989, recebendo quatro prêmios, incluindo o principal, de melhor escola.[25][26]
Com o vice-campeonato, a Beija-Flor foi classificada para se apresentar no Desfile das Campeãs, na madrugada de 12 de fevereiro de 1989. A escola foi a penúltima a desfilar, antes da campeã, Imperatriz. Diferente do desfile oficial, em que se apresentou com a luz do dia, nas 'Campeãs' a escola se apresentou de noite. Atrás do carro abre-alas, a Beija-Flor desfilou com três bonecos de malhação de Judas, representando os três jurados que lhe tiraram pontos, além de uma faixa com a inscrição "Ele teve um Judas; a Beija-Flor teve três". Na véspera do desfile, o juiz Carlos Davidson de Meneses Ferrari novamente proibiu a escola de desfilar com o "Cristo mendigo", atendendo a um pedido da Arquidiocese do Rio. Mas no dia do desfile, uma nova sentença, proferida pelo juiz Arnaldo Pereira de Barros Netto, autorizou o desfile da alegoria, desde que coberta e sem a faixa com a inscrição "Mesmo proibido, olhai por nós!". Policiais militares foram enviados para a área de concentração da escola para impedir que a alegoria desfilasse descoberta e com a faixa. Joãosinho Trinta tentou argumentar com os policiais, mas o presidente da Beija-Flor, Anísio Abraão, ordenou que a faixa fosse retirada da alegoria. Joãosinho então pegou a faixa e tentou levá-la na frente da ala dos mendigos, argumentando que a decisão judicial apenas proibiu o uso na alegoria. A atitude irritou Anísio, que tomou a faixa das mãos do carnavalesco e a rasgou, gerando uma discussão entre os dois. Durante o desfile, quando o "Cristo mendigo" chegava na metade da pista, componentes da escola arrancaram o plástico preto, sob aplausos do público presente no Sambódromo. Diretores da escola subiram na alegoria e cobriram novamente o Cristo, recebendo vaias da plateia. Novamente os componentes arrancaram o plástico preto e o Cristo chegou ao final do desfile apenas com a cabeça e a mão direita cobertas.[27]
"Momento glorioso, glorioso! O povo aplaude. Acompanhem, pelo amor de Deus! Jamais vi um espetáculo tão bonito, gente! Entra agora a polícia, entra agora essa Justiça fajuta. Entrem agora no meio do povo, se tiverem coragem! Impeçam, se tiverem coragem! Vejam que bonito, até do ponto de vista estético. Que desonestidade proibirem uma beleza dessas."
- — Fernando Pamplona, durante a transmissão ao vivo do desfile pela Rede Manchete, ao assistir os componentes arrancando o plástico preto do "Cristo mendigo".[8]
No dia seguinte ao Desfile das Campeãs, o cardeal arcebispo do Rio, Dom Eugênio Sales, determinou a transformação da missa de abertura da Campanha da Fraternidade em um ato de desagravo oficial à "exploração da imagem de Cristo no carnaval". O bispo Dom José Carlos de Lima Vaz dedicou todo o sermão da missa ao assunto, declarando que houve uma cena "altamente profanatória" quando o plástico preto foi retirado da alegoria no desfile, e "apareceu bem nítida a imagem de Cristo e ele se tornou o objeto do escárnio das pessoas", pontuando que "não podemos permitir a chacota, a exploração comercial e a profanação de um símbolo religioso diante dos olhos do público". Também declarou que "não podem os homens da Igreja ficar calados quando os homens querem usar o símbolo numa festa em que muitas vezes há abusos" e que "não podemos usar impunemente a miséria do povo para se promover. O povo merece respeito e deve ser atendido em gestos humildes e desinteressados e não nos espetáculos".[28]
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