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A hipótese de Gaia, também denominada hipótese biogeoquímica,[1] é uma hipótese da ecologia profunda que propõe que a biosfera e os componentes físicos da Terra (atmosfera, criosfera, hidrosfera e litosfera) são intimamente integrados de modo a formar um complexo sistema interagente que mantém as condições climáticas e biogeoquímicas preferivelmente em homeostase.
Originalmente proposta pelo investigador britânico James E. Lovelock em 1972 como "Hipótese de resposta da Terra",[2] ela foi renomeada conforme sugestão de seu colega, William Golding, como Hipótese de Gaia, em referência à mitológica titã que personificava a Terra: Gaia. A hipótese é frequentemente descrita como a Terra sendo um único organismo vivo, mas é uma definição inexata. Lovelock e outros pesquisadores que apoiam a ideia atualmente consideram-na como uma teoria científica, não apenas uma hipótese, uma vez que ela passou por testes de previsão.[3]
A ideia geral de que a vida e seu substrato inorgânico são interdependentes não era nova. À parte as concepções teológicas e filosóficas existentes desde a Antiguidade sobre a natureza divina da Criação e de uma consciência e uma vida superiores imanentes tanto no seres vivos como nos objetos inanimados, cientistas alemães e britânicos vinham trabalhando objetivamente nesta área desde o século XVIII.[4][5] A partir do fim do século XIX, alguns russos levaram adiante essas ideias, mas, devido a barreiras linguísticas e culturais, e ao posterior fechamento do bloco comunista, elas tiveram repercussão praticamente nula na comunidade científica internacional.[6]
A hipótese como é hoje conhecida foi desenvolvida nos anos 1960 pelo cientista britânico James Lovelock, após ele participar de uma equipe da NASA que analisou a possibilidade de existir vida em Marte. Ele publicou seus primeiros textos em 1972, e logo passou a contar com a colaboração decisiva da microbióloga norte-americana Lynn Margulis, que se manteve por décadas.[7] Seu ponto de partida foi o estudo da composição da atmosfera terrestre, que, segundo eles, seria muito diferente da esperada para um planeta situado na posição entre Vênus e Marte (a chamada zona habitável do Sistema Solar), por conter, em sua composição, grandes quantidades de certos gases como o oxigênio, óxido nitroso e metano. Segundo sua proposição, essa composição só poderia ser explicada pela interferência dos organismos vivos sobre o ambiente inorgânico. A partir disso, analisando outras evidências, foi postulado que, após surgir em um planeta deserto, a vida assume o controle do ambiente inorgânico e passa a modificá-lo em seu próprio benefício, a fim de que a vida possa se perpetuar, formando, nesse processo, um sistema complexo e autorregulante, que chamou de Gaia. Na sua visão, os componentes inorgânicos como a atmosfera são considerados parte da biosfera, porque são integrados intimamente ao processo evolutivo da vida. Ao mesmo tempo, eles questionavam a própria definição do que é vida e do que é um organismo vivo.[8]
Apesar de reconhecer que ainda havia um longo caminho a ser percorrido antes de que a existência de um sistema terrestre autorregulante como o descrito fosse provada,[8] esses questionamentos criaram uma zona difusa na definição clássica da vida, e levaram muitos a acreditar que estava sendo postulada a ideia de que a Terra seria ela própria um ser vivo dotado de alguma forma de inteligência e propósito, o que não corresponde à hipótese como ela foi articulada originalmente. O batismo da hipótese com o nome de uma deusa grega — uma sugestão de seu amigo, o escritor William Golding — junto com outras opiniões heterodoxas de Lovelock, só fizeram aumentar a confusão e a rejeição de toda a hipótese pelos cientistas alinhados ao darwinismo, embora ela fosse abraçada com entusiasmo pelos ambientalistas da época.[9][7][10]
É importante distinguir entre essa impressão e a proposição original, a de que a vida assume o controle da Terra e a modifica, passando a formar um sistema ampliado e dinâmico que se comporta "como se fosse" um todo vivo.[11] Segundo Lovelock, essa "entidade viva" é apenas uma metáfora para os processos biológicos atuantes no planeta,[12] onde as criaturas concorrem para controlar uma variedade de componentes do sistema inorgânico, como a temperatura do globo, a composição do solo e da atmosfera, da salinidade dos mares, e outros, que podem ser comparados aos processos internos de um ser vivo, como a regulação da temperatura corporal, da composição do sangue e outros.[13] Mais tarde ele esclareceu esses enganos interpretativos em palestra na Universidade das Nações Unidas:
Em 1979, ele publicou um livro que se tornou popular no movimento ambientalista, Gaia: Um Novo Olhar sobre a Vida na Terra, atraindo também a atenção de vários cientistas, que passaram a dar mais atenção ao que ele propunha. Rene Dubos elogiou a teoria em artigo aprovado pela prestigiosa revista Nature, o físico Philip Morrison, escrevendo para a revista Scientific American, a considerou uma excitante e inovadora forma de interpretação do sistemas da Terra, e Stephen Schneider, diretor de Estudos Avançados do National Center for Atmospheric Research, disse que "a Hipótese de Gaia é um brilhante princípio organizador que reúne pessoas que normalmente não falavam entre si, como os biólogos, os geoquímicos e os cientistas da atmosfera, e os leva a fazer perguntas do tipo 'como chegamos até aqui?' e 'como funciona o mecanismo?' Em seu nível mais essencial, a teoria de Lovelock força os geólogos e biólogos a enfrentarem a pergunta: 'Quão importante é a vida para a evolução e funcionamento da Terra?" Em breve a hipótese estava sendo largamente debatida na comunidade científica. Uma conferência organizada em 1985 pela National Audubon Society gerou mais de 1 300 páginas de artigos e comentários, mas a polêmica continuava grande, porque o conhecimento da época sobre os fenômenos naturais era muito menor do que o de hoje, havendo muito mais incertezas em vários níveis, mas também porque seus conceitos foram apropriados de maneira indiscriminada e equivocada por movimentos populares e pseudo-científicos, dando-lhes mesmo contornos místicos.[10] Porém, é fato que suas concepções tinham implicações transcendentais. Stephan Harding, seu colaborador, assim as descreveu:
Ainda existe bastante controvérsia na questão semântica de se atribuir a denominação de "ser vivo" a um conjunto interdependente de populações biológicas em seu planeta físico, e algumas de suas proposições ainda não foram provadas, mas outras foram ratificadas com sólidas evidências.[5] O ponto mais debatido é até que nível a vida é capaz de modificar seu ambiente em seu favor e mantê-lo em homeostase, mesmo a despeito de ameaças catastróficas e das diferentes necessidades que os seres têm para viver, que muitas vezes são mutuamente excludentes. Há casos em que os organismos podem modificar o ambiente de maneira tal que o resultado final do processo é nocivo para eles mesmos ou para outros seres, o que para alguns críticos inviabiliza uma aplicação geral da teoria. Também questiona-se se os feedbacks entre organismos e ambiente seguem as leis do darwinismo, como foi sugerido por Lovelock, e contesta-se que a evolução das espécies tenha ocorrido de forma mais cooperativa do que competitiva.[15][16][17]
As dificuldades aumentam na medida em que Lovelock fez declarações que parecem se contradizer em aspectos essenciais, como pensam Nunes Neto & El-Hani: "A análise [...] de passagens importantes de sua obra permite que concluamos que Lovelock explica o funcionamento de Gaia proposto por sua teoria de maneira teleológica, apelando repetidamente para as idéias de propósito, homeostase, otimização ou função. A despeito disso, ele rejeita a ideia de teleologia de maneira peremptória, como ilustra a seguinte afirmação a respeito dele e de Margulis: 'Em nenhuma parte de nossos escritos, nós expressamos a ideia de que a autorregulação planetária tem um propósito, ou envolve previsão ou planejamento pela biota'." Apesar dessas aparentes incongruências, apoiados na opinião de outros, Nunes Neto & El-Hani reconhecem que as explicações teleológicas e funcionais de alguma forma podem ser necessárias para uma compreensão mais ampla e precisa dos sistemas terrestres.[5] De qualquer maneira, a existência de uma influência mútua entre ambiente e seres vivos, e a capacidade dos seres vivos de modificar o ambiente pelo menos em alguma medida, afim de que sua sobrevivência seja assegurada, são hoje largamente aceitas.[18][16][19][5] É incontroversa a ação da biosfera na manutenção dos ciclos biogeoquímicos de elementos essenciais como o carbono, nitrogênio, fósforo, enxofre, oxigênio, cálcio, magnésio e outros, sem os quais a preservação da vida na Terra seria impossível.[20][21][22]
Mais do que isso, a hipótese abriu todo um novo campo de estudos nas Ciências da Terra,[23] e contribuiu para abalar a concepção mecanicista da vida e do universo, favorecendo uma visão holística em que fica evidente a estreita dependência de todos os seres vivos entre si e com o mundo em que vivem. Também foi importante para a formação de uma mentalidade mais ética em relação à natureza, em uma época em que a destruição do ambiente é vasta e disseminada, e se torna perigosa para a sobrevivência da própria humanidade.[5][24] Em 2006 Lovelock foi distinguido com a Medalha Wollaston da Sociedade Geológica de Londres pelos avanços introduzidos no campo científico principalmente com esta teoria. O juri de premiação assim justificou:
A hipótese continua popular em meios extracientíficos, tendo sido expandida e transformada de múltiplas maneiras.[26] Tem sido um motivo originador de obras de arte, literatura, filmes, quadrinhos, e exerce um efeito importante na ficção científica;[27] foi incorporada a cultos religiosos e correntes místicas, filosóficas e ambientalistas, e está presente de maneira ampla na cultura de massa.[28][29][26]
A Hipótese de Gaia é o título do livro contos de Jorge Reis-Sá, vencedor do Grande Prémio do Conto Branquinho da Fonseca da Associação Portuguesa de Escritores.
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