Dialogismo

conceito de Bakhtin Da Wikipédia, a enciclopédia livre

Dialogismo é um conceito desenvolvido pelos filósofos russos Mikhail Bakhtin e Valentin Volóchinov. Para Bakhtin, todos os enunciados (acontecimentos de linguagem, como uma fala, um discurso, uma carta) têm a propriedade de ser dialógicos. Determinado indivíduo, ao proferir (ou escrever) um enunciado, interage, conscientemente ou não, com outros enunciados, outros discursos, concordando ou discordando, complementando e se construindo na interação com eles. De modo mais amplo, a própria linguagem humana tem a propriedade de ser dialógica, formando uma cadeia ininterrupta de enunciados que seguem uns aos outros.[1]

Por exemplo, suponhamos que determinado indivíduo emita o seguinte enunciado, em um ato real de comunicação: não existe racismo no Brasil. Ao fazê-lo, ele está pressupondo que seus interlocutores tenham certos conhecimentos prévios a respeito do racismo, e de sua existência naquele país. O enunciado só faz sentido porque ele interage, responde àqueles que afirmam a existência do racismo na sociedade brasileira. Esse exemplo, mais ilustratuvo, pode ser expandido. Assim, chegamos ao princípio geral, que é o fato de ser o dialogismo inerente à linguagem humana. Todo enunciado pressupõe a existência de outras vozes, com as quais ele interage.[1]

Para além desse dialogismo constitutivo, há outras formas de apresentar vozes alheias em determinado discurso. Isso é feito por meio de recursos, como o discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre e as aspas. Tais recursos, entre outros, podem ser vistos como uma materialização do dialogismo inerente à linguagem humana. Tal materialização não é obrigatória. Mesmo que um autor opte por não fazer uma citação direta, ele ainda assim está em diálogo com outras vozes, com outros discursos.

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O dialogismo é um dos conceitos principais para a teoria do filófoso russo Mikhail Bakhtin.

Para Bakhtin, o dialogismo — também chamado de "relações dialógicas"[2] — são relações entre índices sociais de valores que constituem o enunciado, compreendido como unidade da interação social.[3] O dialogismo implica a compreensão individual/coletiva como um processo no qual sua dinâmica lhe confere um caráter social e cultural determinante[4]. Se trata de um conceito com ampla aplicabilidade que permite a aprendizagem de diversas práticas sociais.[5]

Para que ocorram as relações dialógicas, é preciso que qualquer material linguístico ou semiótico entre na esfera do discurso, ou seja, se transforme em enunciado, tenha fixado a posição de um sujeito social. Só assim é possível responder, isto é, fazer réplica ao dito, confrontar posições, fazer intervenções, concordar ou discordar.

A palavra chave da linguística bakhtiniana é diálogo: "as relações dialógicas são de índole específica: não podem ser reduzidas a relações meramente lógicas (ainda que dialéticas) nem meramente linguísticas (sintático-composicionais).Elas só são possíveis entre enunciados integrais de diferentes sujeitos do discurso".[6]

Mesmo num monólogo, há dialogismo, pois nesse ato, aparentemente individual, há vozes que dialogam. Portanto, o dialogismo não se restringe ao diálogo face a face, mas a todo enunciado no processo de comunicação manifestado em diferentes dimensões.[1]

Conceitos constituintes

Para o linguista brasileiro José Luiz Fiorin,[1] os três eixos básicos norteadores do pensamento bakhtiniano que constituem a concepção de dialogismo são:

  • a unicidade do ser e do evento;
  • a relação eu/outro; e
  • a dimensão axiológica.

O primeiro conceito diz respeito ao modo real de funcionamento da linguagem, ou seja, "todos os enunciados constituem-se a partir de outros".[7] O segundo trata-se da incorporação, pelo enunciador, das vozes de outros no enunciado. É uma forma composicional visível na qual é possível ver o discurso alheio. "São maneiras externas e visíveis de mostrar outras vozes no discurso".[8] O terceiro está relacionado ao sujeito, à subjetividade que é "construída pelo conjunto de relações sociais de que participa o sujeito."[9]

Relação com outros conceitos

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Relação com intertextualidade

Dialogismo não deve ser confundido com intertextualidade, pois não é qualquer relação dialógica que se pode chamar de intertextualidade.

Para Bakhtin, há uma diferença entre texto e enunciado. Segundo Fiorin, a diferença entre eles seria que "enunciado" é um todo de sentido, uma posição assumida pelo enunciador, "marcado pelo acabamento, dado pela possibilidade de admitir uma réplica",[10] enquanto "texto" pertence ao domínio da materialidade, ou seja, a um conjunto coerente de signos verbais e não verbais, é uma realidade imediata. É a manifestação do enunciado.

Dessa forma, pode haver relação dialógica entre textos e entre enunciados. Assim, a intertextualidade refere-se apenas às relações dialógicas materializadas em textos. "Isso pressupõe que toda intertextualidade implica a existência de uma interdiscursividade (relações entre enunciados), mas nem toda interdiscursividade implica intertextualidade".[11] Pois há textos que não mostram o discurso do outro, mas possibilita a interdiscursividade.

Relação com polifonia

Polifonia para Bakhtin não é apenas um universo de muitas vozes, mas um universo em que todas as vozes são equipolentes, isto é, têm o mesmo valor, sem que nenhuma se sobreponha às demais.[12] O estudo voltado a esse tema se encontra na obra Problemas da poética de Dostoiévski[13] (1963) a qual Bakhtin dedica suas reflexões ao gênero romance polifônico, dando origem ao conceito de polifonia. O dialogismo é um conceito mais amplo, e esta associado à linguística. Já a polifonia está relacionada à teoria literária.

Nas palavras do escritor brasileiro Cristóvão Tezza, "a polifonia é mais uma visão de mundo do que uma categoria técnica".[14]

Muitos pesquisadores usam o dialogismo como sinônimo de polifonia, no entanto, há estudos que mostram a diferença. Como em Maciel[15] no artigo Diferenças entre dialogismo e polifonia. Nas palavras no autor, "Se o dialogismo já se faz presente na interação entre quaisquer vozes, a polifonia depende da amplitude das ideias que se discute." Assim, pode-se dizer que as relações dialógicas integram a polifonia, mas não coincidem com ela. "No romance polifônico, expressa-se um conjunto específico de relações dialógicas. Os vínculos entre microdiálogo, diálogo e grande diálogo se realizam por meio de relações dialógicas. A passagem de um tema por muitas e diferentes vozes se dá por meio de relações dialógicas."

Ver também

Referências

  1. Luiz., Fiorin, José (2006). Introdução ao pensamento de Bakhtin. [S.l.]: Ática. ISBN 8508105215. OCLC 212885467
  2. Mikhailovitch), Bakhtin, M. M. 1895-1975 (Mikhail (2010). Estetica da criação verbal. [S.l.]: Martins Fontes. ISBN 9788578272609. OCLC 817220864
  3. ABDALA JUNIOR, Roberto. «Brasil anos 1990: teleficção e ditadura — entre memórias e história». Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro. 13 (25): p. 94-111, jul./dez. 2012. Consultado em 22 de março de 2024
  4. ABDALA JUNIOR, Roberto. «Brasil anos 1990: teleficção e ditadura — entre memórias e história». Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro. 13 (25): p. 94-111, jul./dez. 2012. Consultado em 22 de março de 2024
  5. Bakhtin 2010, p. 323.
  6. Faraco 2009, pp. 77-80.
  7. 1895-1975., Bakhtin, Mikhail M. (2008). Problemas da poética de Dostoievski. [S.l.]: Forense Universitária. ISBN 9788521804376. OCLC 298933230
  8. Tezza 2002, pp. 297-98.
  9. Maciel, Lucas Vinício de Carvalho (18 de março de 2016). «Diferenças entre dialogismo e polifonia». Revista de Estudos da Linguagem. 24 (2). 580 páginas. ISSN 2237-2083. doi:10.17851/2237-2083.24.2.580-601

Bibliografia

Ligações externas

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