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Genealogia (em grego: γενεαλογία, composto de γενεά- "genea-", origem, nascimento, e -λογία "-logia", estudo, conhecimento[1]) é uma disciplina auxiliar da História que estuda a origem, a evolução e a dispersão das famílias, assim como dos seus respectivos nomes, sobrenomes ou apelidos,[2] e as suas estirpes (linhagens)[3] para traçar um mapa das ligações biológicas e de afinidade entre diferentes indivíduos e gerações.[4] Os genealogistas usam registros históricos, entrevistas orais, análise genética e fontes secundárias para construir árvores genealógicas, tratando das ligações de parentesco tanto em sentido vertical (dos ancestrais para os descendentes ou vice-versa) quanto em sentido horizontal (dos irmãos e primos entre si).[2]
Em tempos passados era praticada exclusivamente pela elite,[5] declarando parentescos a fim de consolidar o prestígio das famílias e legitimar suas pretensões ao poder, mas não havia preocupação em provar as ligações documentalmente ou preservar uma memória familiar no sentido moderno, em geral misturando indiscriminadamente mitos, lendas e fatos. A partir de fins do século XVII, passou a ser investigada de maneira científica, mas manipulações ideológicas persistem até hoje. A genealogia tem associações profundas com uma ampla variedade de políticas e ideologias raciais, sociais, culturais e nacionalistas, e é um elemento fundamental na estruturação, coesão e funcionamento das sociedades.
Sua relevância em múltiplos níveis justifica a vasta bibliografia existente sobre o tema. Na contemporaneidade, a pesquisa genealógica se tornou uma atividade extremamente popular, que tem provocado um impacto importante nas formas de entendimento do passado e das origens pela população em geral, fenômeno que tem atraído a atenção dos especialistas pelos problemas que a atividade leiga desencadeia no sentido de uma difusão acrítica da história e de conhecimentos que muitas vezes são falsos ou distorcidos. Uma pesquisa genealógica consistente, em particular quando vai remontando a séculos recuados, está além da capacidade dos leigos, exigindo conhecimento em diversas disciplinas especializadas como a paleografia, diplomática, sociologia, história, filologia, onomástica e outras, além de trabalhar numa metodologia científica.
A genealogia se ocupa da identificação da ligação biológica entre diferentes indivíduos e da reconstituição da sequência ordenada de gerações dentro de um grupo familiar, buscando determinar as origens, a rede de parentescos e a evolução cronológica da família. Numa perspectiva mais abrangente, onde se associa à prosopografia, à história, às ciências humanas e sociais, procura reconstituir o perfil e a história política, econômica e cultural da família e seus integrantes, suas associações com outros grupos e seu papel na sociedade.[6][7] No âmbito da história, a genealogia está centrada no estudo das famílias, dando subsídios para e sendo subsidiada por outras ciências, como a sociologia, a economia, a história da arte, a genética, a medicina ou o direito.[7][8]
O terno também é empregado em outras áreas de estudo significando a pesquisa das origens, ligações e desdobramentos de determinada ciência, corrente, ideologia, ideia, moda ou tendência, de outros seres vivos, ou mesmo de objetos e invenções, como por exemplo a genealogia da moral, a genealogia da matemática, a genealogia da filosofia de Kant, a genealogia do cão doméstico, a genealogia do violino.[6][9]
A genealogia é reconstituída através de documentos escritos, como atos legais (certidões de nascimento, casamento e óbito, contratos, inventários, testamentos, etc.), bibliografia histórica, crônicas, arquivos cívicos, familiares, judiciais, militares e religiosos, correspondência, inscrições, lápides, imprensa e outros, mas também pode se valer de tradições orais e imagens. A genealogia pode ser ascendente, partindo do sujeito presente e retrocedendo pelas gerações antepassadas, ou descendente, partindo do fundador da família e acompanhando a evolução da sua posteridade.[7][6]
Um dos principais problemas da pesquisa genealógica é assegurar a veracidade das informações transmitidas pelos documentos e tradições. A oralidade em geral é uma fonte pouco confiável, sendo particularmente propensa a distorções e imprecisões, mas usualmente conserva uma parte de verdade. Documentos podem conter erros inadvertidos, e podem conter informações deliberadamente falseadas. Falsificação de fontes e de árvores genealógicas foram e ainda são expedientes comuns. A documentação pode atestar uma filiação oficialmente reconhecida, mas também pode dissimular uma adoção secreta ou o fruto de um adultério. Quando o pesquisador imagina estar seguindo a linha do sangue, pode estar seguindo uma linha que é apenas cartorial, e quanto mais se recua no tempo, mais difícil é descobrir se esses desvios ocorreram ou não.[10] Estimativas precisas são impossíveis, mas calcula-se que na população europeia exista uma taxa média de até 4,5% de falsa paternidade.[11][12]
Determinar a veracidade nem sempre é possível, e por isso a genealogia é uma ciência que tem de lidar com grandes doses de incerteza. Mesmo quando se sabe que as informações são inverossímeis, elas podem conter elementos verdadeiros e podem apontar para pistas que levem ao descobrimento da verdade. Podem auxiliar a diminuir as dúvidas a comparação entre documentos diferentes tratando do mesmo tópico, a análise do perfil prosopográfico do grupo familiar, a análise científica da documentação na tentativa de descobrir falsificações, comparação do material genético dos alegados membros da família, etc., o que requer conhecimento especializado e grande experiência, e geralmente tem um alto custo.[13] A genealogia a todo momento envolve o trabalho com documentos antigos, muitas vezes em línguas diferentes ou em dialetos já poucos compreensíveis, em caligrafias difíceis, ou com expressões de significado múltiplo ou dúbio, elementos cuja decifração e interpretação correta estão além do alcance de amadores.[14]
Outro problema relevante é a dificuldade de traçar a genealogia europeia para trás da Idade Moderna, primeiro pela crescente escassez de fontes, e segundo pela inconsistência nas maneiras de denominação das pessoas, que não usavam sobrenomes antes do século XI; no século XVI a adoção de sobrenomes ainda não se generalizara, e a inconsistência na onomástica se perpetuaria em certas regiões até hoje. Por muito tempo as pessoas foram denominadas pela sua ocupação, pelo nome do pai, pelo lugar de origem ou por algum apelido, como por exemplo João Ferreiro, Antônio [filho] de Batista, Pedro de Florença ou José o Velho, ou de maneiras arbitrárias. Muitos desses apelativos acabaram se fixando como sobrenomes.[15][16] Em outras culturas, porém, como a chinesa, os sobrenomes se fixaram muito mais cedo, mas em muitas outras nunca foram usados.[15]
Mesmo depois de estabelecidos, os sobrenomes podem mudar por várias razões, como para evitar perseguições políticas, para ocultar uma origem indigna, por tradições locais, por apadrinhamentos, por erros de registro que se perpetuam nas gerações sucessivas. Costumes locais podem influir muito. A tradição portuguesa, por exemplo, foi muito livre quanto à adoção de sobrenomes, podendo ocorrer vários na mesma célula familiar, usados sem continuidade consistente, e isso se reproduziu no Brasil até a padronização imposta no século XX. Além desses problemas, a existência de muita homonímia frequentemente leva à confusão entre indivíduos diferentes.[17][18]
Tampouco a posse de um mesmo sobrenome é garantia de parentesco; de fato, a homonímia entre famílias não consanguíneas é extremamente comum. Inúmeros sobrenomes familiares no Ocidente se originaram de alcunhas, de patronímicos, de nomes de coisas, animais, ofícios, santos ou lugares que tinham uso generalizado, a exemplo de Ferreira (do ofício de ferreiro), Peixe (animal), Carneiro (animal), Pilar (objeto), Barros (material), Cardoso (da planta do cardo), Castro (castelo), Moreira (da árvore amoreira), Alves (antigamente Álvares, significando "filho de Álvaro"), Fernandes ("filho de Fernando"), Santana (Santa Ana), Serra (ferramenta), Carreiro (caminho), Cunha (ferramenta), e muitos outros, todos de larga difusão no mundo lusófono, pertencentes cada um a numerosas famílias de origens biológicas, cronológicas e geográficas inteiramente diferentes.[19][20]
O interesse pela genealogia não é novo. Na Antiguidade muitas famílias ilustres traçaram genealogias que as associavam a ancestrais de tempos remotos, não raramente incluindo entre eles personagens fictícios como heróis lendários e divindades, incorporados às genealogias para emprestar-lhes prestígio. Enquanto em tempos passados a genealogia misturava indiscriminadamente mitos e fatos, e era usada antes para afirmar um parentesco do que para comprová-lo objetivamente, a partir do século XVIII iniciou um movimento em direção a uma pesquisa de caráter científico, que se tornou a abordagem empregada atualmente nos estudos genealógicos acadêmicos.[21][22] Como refere a historiadora Sara Trevisan,
Atualmente a pesquisa da genealogia familiar se tornou uma atividade extremamente popular, sustentada pela disponibilização de uma vasta quantidade de dados arquivísticos e bibliográficos através da internet, mas essa popularização acentuou os problemas na área, sendo feitas pesquisas por uma multidão de amadores sem critério e método, usando fontes de baixa ou nula confiabilidade, com o resultado de proliferarem largamente genealogias falsas ou duvidosas.[8][14] Segundo a pesquisadora Regina Poertner, as buscas genealógicas são atualmente a terceira maior atividade na internet, perdendo apenas para o comércio e para a pornografia.[24] Em 2004, Jerome de Groot, em uma conferência promovida pela International Federation for Public History, chamou a atenção para este fenômeno e considerou que ele representava um desafio para a historiografia estabelecida e para as práticas de história pública, convidando os acadêmicos a estudarem as várias dimensões em que atuam a genealogia e a história familiar, estabelecendo o contexto local, nacional e internacional para as investigações, e as consequências e implicações de tamanha explosão no interesse genealógico contemporâneo para a imaginação cultural, para a história e para o conhecimento.[23][25] Comentando esse chamado à ação, o professor Paul Knevel considerou que embora os leigos tenham critérios frouxos na construção da genealogia, é importante que os acadêmicos entendam o que significa para eles essa tentativa de fazer o passado reviver no presente, a importância das implicações afetivas, psicológicas e sociais dessa atividade, e como isso tudo afeta a valorização da história e da ciência pelo público em geral.[25]
A avidez com que hoje as pessoas se aproximam da genealogia, por outro lado, pode torná-las alvos fáceis para empresas e indivíduos inescrupulosos que prometem pesquisas "científicas" mas entregam resultados pouco confiáveis ou inteiramente fantasiosos, ou as exploram de variadas maneiras.[26][27][28] Diversos pseudo-pesquisadores se tornaram notórios pelas suas fraudes genealógicas, às vezes cobrando altas somas pelos seus trabalhos, como Charles H. Browning, Orra E. Monnette, Frederick A. Virkus, C. A Hoppin, Horatio Gates Somersby, Gustave Anjou e John S. Wurts.[29]
A busca pelas origens pode ter várias motivações num mundo que muda rapidamente, onde crescem os sentimentos de distância e desenraizamento e aumentam as dificuldades nos relacionamentos sociais. Pode trazer informações interessantes de um modo geral, pode preservar a memória familiar, pode fortalecer o senso de identidade ou de pertencimento a um grupo, pode criar ligações concretas com parentes antes desconhecidos, ultrapassando barreiras geográficas e culturais, pode proporcionar explicações para aspectos da vida presente e lições úteis para a vida futura, e a percepção da continuidade geracional pode dar um novo sentido à existência e reforçar a autoestima.[30][24][31] Segundo Eviatar Zerubavel, a objetivação da genealogia também pode causar uma grande distorção na percepção do tempo pelas pessoas, e uma experiência vicarial da história: "Ser membro de uma linhagem promove um sentido quase interpessoal do passado. Em outras palavras, promove uma maneira quase autobiográfica de vivenciar até mesmo eventos históricos muito distantes", acrescentando que há muitos testemunhos de que conhecer as origens transformou profundamente a visão que as pessoas tinham de si mesmas e de seu lugar no mundo, mas que essa revelação pode ser entusiasmante ou desagradável.[32]
Há outros aspectos relevantes. Elementos genealógicos, reais ou imaginados, são onipresentes em ideologias políticas relativas aos conceitos de raça e etno-nação e em mitos fundadores de culturas, comunidades e nações, e são centrais para a manutenção da sua integridade, identidade e coesão. Os laços biológicos ou familiares são um poderoso estruturador do funcionamento das sociedades, e a identificação do lugar do indivíduo nesta rede é um fator importante na determinação do seu comportamento social e no seu bem-estar psíquico e emocional. A herança pode transmitir bens materiais mas também capitais simbólicos e sociais. Descender dos fundadores da comunidade ou de um personagem ilustre do passado, por exemplo, muitas vezes acrescenta prestígio e poder aos seus descendentes mesmo após muitas gerações, pode abrir muitas portas e ser um fator decisivo na preservação da influência e status da família, bem como pode servir como o cimento agregador de todo um clã e como um centro de confluência e preservação de tradições específicas. Reversamente, um personagem mal-afamado pode lançar uma sombra duradoura sobre sua descendência e prejudicar seu sucesso social. Não por acaso a manipulação ideológica da genealogia, suprimindo elos indesejados ou acrescentando outros que não existem na realidade, sempre foi uma prática comum desde a Antiguidade. Conhecer a genealogia é uma expansão do conhecimento do grupo familiar imediato, e a ignorância a respeito das raízes mais antigas muitas vezes tem efeitos similares ao desconhecimento dos pais biológicos pelas pessoas que descobrem terem sido adotadas, o que muitas vezes desencadeia sentimentos de confusão, incompletude e abandono, desajuste social e crises de identidade. A criação de fantasias compensatórias é relativamente comum entre indivíduos e grupos sociais cujas raízes foram cortadas, como os africanos que foram escravizados e levados para a América, onde perderam seus nomes e suas tradições, e os judeus, frequentemente perseguidos e expulsos de vários países e cidades do Ocidente.[33]
A pesquisa genealógica popular costuma dar grande importância à descoberta de antepassados nobres, ilustres ou heroicos, e de fato, se a pesquisa descobre uma linha que recua por vários séculos ela passa a progredir quase invariavelmente através de famílias nobres, sendo extremamente escassas as informações genealógicas sobreviventes sobre as classes populares no passado distante,[36] mas ainda não é de conhecimento geral o fato de que todas as pessoas vivas compartilham dos mesmos ancestrais remotos,Ver nota:[37] e que todas tiveram tanto reis como escravos entre seus antepassados. Esse desconhecimento contribui para que as antigas associações da genealogia com o poder, a política e o prestígio, a identificação com uma raça, uma nação ou um clã específicos, se perpetuem no presente, podendo se prestar ao fomento de vaidades, a novos divisionismos, a disputas e ao reforço de preconceitos e mitos, dando base para a repetição de exemplos trágicos de perseguições, expurgos étnico-culturais e exclusão social ocorridos ao longo da história, que carecem de justificação ética e de fundamentação científica.[38] Nas palavras do genealogista Mark Humphrys,
A descendência da Antiguidade é um tópico dos estudos genealógicos e prosopográficos que busca estabelecer a ligação entre famílias modernas e as famílias da Antiguidade. Embora seja um fato auto-evidente que todas as pessoas vivas descendem de antepassados que viveram na Antiguidade, a comprovação segura de toda a sequência de gerações para os descendentes de europeus ainda é impossível, havendo uma dramática lacuna de registros entre o fim da Antiguidade e a Idade Média.[22][39] O mesmo vale para outras regiões do mundo. Apenas um reduzido grupo de famílias do Oriente parece manter registros ininterruptos relativamente confiáveis até o século III ou IV. Para trás desta época, com o conhecimento disponível hoje, embora algumas vias de ligação com épocas ainda mais antigas permaneçam possíveis ou mesmo sejam prováveis, os elos documentados concretamente ainda estão ausentes.[40][22][39]
Para as famílias europeias, um passo fundamental foi dado pelos eruditos do século XIX, que compilaram todos os registros conhecidos até aquela época sobre todos os personagens da Antiguidade Clássica do Ocidente, permitindo a reconstrução da genealogia de muitas famílias da Grécia e da Roma antigas, embora sua ligação com as famílias modernas permanecesse obscura.[22]
Em vista da dificuldade insuperável representada pela documentação ausente ou incerta, na primeira metade do século XX a questão da descendência da Antiguidade se tornou bastante desacreditada entre os especialistas.[22][21] Contudo, nas últimas décadas ela voltou a receber atenção, especialmente a partir do trabalho de David Kelley A New Consideration of the Carolingians (1947), que foi uma das principais fontes para os influentes ensaios de Anthony Wagner, Pedigree and Progress: Essays in the Genealogical Interpretation of History (1975).[22][41] Esses estudos revitalizaram o tema, e os progressos posteriores nas áreas da paleografia, hermenêutica, arqueologia, epigrafia, cronologia, onomástica, prosopografia e outros campos de investigação, trouxeram à luz uma massa de novos dados que tornaram possível estabelecer caminhos bastante plausíveis para ligar algumas famílias modernas às antigas.[22][21][13][39] Entre os casos promissores estão as linhagens de Carlos Magno, Alfredo o Grande, Rurício de Limoges e os Bragatiônidas.[39] A despeito da reserva e cautela dos especialistas em torno deste tema, circulam livremente na internet e em publicações muitas genealogias sem fundamento documental sólido que remontam a milênios antes de Cristo.[23]
O fator antiguidade tem um grande peso na manipulação genealógica para solidificar variadas pretensões ideológicas. A legitimidade política e sociocultural da Casa Imperial do Japão reside na crença de que descendem de Jimmu, o primeiro imperador japonês. Para justificar suas pretensões sobre Kosovo, os albaneses alegam descender dos ilírios, povo da Antiguidade que vivia na área antes da chegada dos eslavos, assim como alguns palestinos sustentam sua reivindicações sobre a Palestina baseados em alegações de descendência dos canaanitas, que ocupavam a região antes dos judeus.[42]
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