Acumulação primitiva é um conceito cunhado por Karl Marx no Livro I de O Capital (1967) para compreender os eventos que possibilitaram o surgimento do capitalismo a partir da dissolução do sistema feudal. O sistema capitalista desenvolveu-se em uma série de estágios, caracterizados por distintos níveis de maturidade.[1] Para Marx, seria a própria acumulação primitiva - previous accumulation ou "acumulação original", para Adam Smith - o seu ponto de partida, estabelecendo suas bases econômicas e sociais: o "pecado original" que daria origem a miséria das massas.[2]

A formação do capital e a acumulação primitiva

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O Capital, Livro 1, capa da 1.ª edição, 1867

A acumulação primitiva enquanto conceito é abordado por Karl Marx no capítulo 24 do Livro 1 de O Capital, "A assim chamada acumulação primitiva". Segundo Marx, a origem do modo de produção capitalista não está ligada a uma pura e simples racionalização da divisão do trabalho social, mas sim a um processo violento de expropriação da produção familiar, artesanal, camponesa, corporativa. Tal expropriação separou o produtor direto dos seus meios de produção e subsistência e formou enormes massas de indigentes e desempregadas que rapidamente transformam-se em uma volumosa reserva de força de trabalho livre e disponível para ser comprada, o proletariado.[3]

Ainda de acordo com Marx, para que o capital exista - isto é, para que dinheiro e mercadoria, meios de produção e subsistência, adquiram status de capital - é necessário a existência de duas categorias distintas de indivíduos: aqueles que possuem os meios, e aqueles produtores que, desvinculados desses, integram a massa de trabalhadores livres. É essa separação entre os produtores e a propriedade dos meios de produção, que se intensifica a partir do século XVII, a responsável pela acumulação primitiva do capital na mão dos possuidores e a materialização das condições fundamentais para o surgimento so sistema capitalista.[4] Por outro lado, a exploração das colônias ultramarinas através de saques, especulação comercial, tráfico de escravos e monopólios mercantis propiciaram enormes oportunidades de enriquecimento para uma parcela da burguesia.[3]

O sistema feudal

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O sistema feudal na Idade Média.

No século XV, a vasta maioria da população inglesa era constituída de camponeses economicamente autônomos, que recebiam salários e terras para cultivo. Aqueles entre eles que tivessem tempo livre também poderiam trabalhar para os grandes proprietários.[5]

Caracterizava a sociedade medieval a posse direta dos produtores sobre seus meios de produção e subsistência e, particularmente, sua ligação com à terra. Essa massa camponesa livre desfrutava de terras comunais, garantidoras de pasto para rebanhos, matérias primas e combustíveis. A terra de um senhor era partilhada entre seus vassalos, cujo excedente do trabalho era por ele apropriado através do que Karl Marx denomina de meios "extra econômicos": a coerção direta através do uso da força.[6][7] O número de súditos de um senhor era uma representação de seu poder.[5]

Com a virada para o século XVI, essa estrutura deixa de ser a regra: dissolvem-se os séquitos feudais, e uma massa de trabalhadores livres é lançada ao mercado. Foi a dissolução da estrutura econômica da sociedade feudal que permitiu o surgimento da estrutura econômica capitalista.[8][9]

Expropriação das terras comunais

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Mapa conjectural de uma senhoria medieval inglesa. A parte alocada para 'pasto comum' é mostrada na seção nordeste, sombreada em verde.

Enquanto nos séculos XV e XVI a legislação inglesa ainda buscava, mesmo que sem sucesso, resistir a expropriação das terras comunais, no século XVIII era ela própria, apesar das queixas populares, aquela a decretar as leis para cercamentos (Bills for Inclusures of Commons). As terras expropriadas passam as mãos dos proprietários fundiários.[10]

Com a Reforma, também as posses da Igreja, grande detentora de terras, são expropriadas. Sua terras são vendidas ou presenteadas, moradores de monastérios são expulsos e a parcela do dizimo dedicada as populações mais pobres são confiscadas.[11]

Os grandes senhores feudais, em oposição à Coroa e ao Parlamento, incentivam o expansão da massa de trabalhadores livres ao usurpar as terras comunais e expulsar de modo brutal os camponeses das terras onde viviam, seus meios de produção e subsistência, e sobre as quais possuíam os mesmos títulos jurídicos feudais.[12] A nova aristocracia fundiária se alia a nova bancocracia e os grandes manufatureiros. O roubo das propriedades comunais e dos domínios estatais e da igreja inchou ainda mais os arrendamentos (fazendas de capital) e liberou a população para indústria.[10]

A Revolução Gloriosa conduz ao poder do novo proprietário fundiário e o capitalista, agora possuidor de domínios estatais e da Igreja, para além das antigas terras comunais. Está dada assim a base do que se tornaria a oligarquia inglesa do século XX. O solo torna-se agora um artigo comercial, ampliando a superfície de exploração agrícola que se beneficiará da ampla oferta de proletariado.[13]

Já nas ultimas décadas do século XVIII, a uma vez numerosa classe de camponeses livres já foi perdida, substituída por pequenos arrendatários, e a propriedade comunal deixa de existir por completo. Livres dos meios de produção, essa nova massa de trabalhadores se vê forçada a vender a única coisa que possuem: sua força de trabalho.[14] Somente no capitalismo é que o modo de apropriação dominante baseia se na desapropriação dos produtores diretos legalmente livres, cujo-trabalho excedente é apropriado por meios puramente "econômicos".[15]

Advento do modo de produção capitalista

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Cena industrial mostrando siderurgia em Nantyglo, Blaenau Gwent, Grã-Bretanha, na década de 1830.

Com o fim do regime feudal, o antigo modo de produção não será necessariamente eliminado, mas progressivamente reduzido em escala até não presentar competição para o regime capitalista. Esse expandiu-se além dos limites de seu predecessor, e contava com o suporte de novas forças produtivas e potencialidades econômicas. No momento em que essas se apresentam substancialmente estabelecidas, a nova classe dominante - o capitalista - afirma seu poder.[1]

É com a Revolução Industrial e as inovações técnicas dela advindas, entretanto, que a acumulação primitiva dá espaço para a acumulação capitalista em definitivo. Em contraste com a sociedade feudal, a sociedade moderna caracteriza-se por uma relação contratual entre trabalhador e capitalista, a primeira vista indistinguível de qualquer das outras transações de livre mercado.[16][6]

Ver também

Referências

  1. Dobb 1983, p. 12.
  2. Marx 2023, p. 959 - 960.
  3. Marx 2023, p. 959-1494.
  4. Marx 2023, p. 960 - 961.
  5. Marx 2023, p. 964.
  6. Dobb 1983, p. 14.
  7. Wood 2001, p. 77.
  8. Marx 2023, p. 965.
  9. Marx 2023, p. 961.
  10. Marx 2023, p. 971.
  11. Marx 2023, p. 968.
  12. Marx 2013, p. 965.
  13. Marx 2023, p. 970.
  14. Sell 2009, p. 58.
  15. Wood 2001, p. 77-78.

Bibliografia

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